quarta-feira, 18 de julho de 2012

AZULÃO
Jayme Ovalle e Manuel Bandeira

Vai azulão
Azulão companheiro vai
Vai ver minha ingrata
Diz que sem ela
O sertão não é mais sertão
Ah, voa, azulão
Azulão, companheiro vai...

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886-1968) é uma das figuras mais importantes da poesia brasileira e um dos iniciadores do Modernismo. Apesar de ser um poeta fabuloso, também foi ensaísta, cronista e tradutor. O próprio autor define sua poesia como a do "gosto humilde da tristeza". Grandes músicos de seu tempo como Heitor Villa-Lobos musicaram poemas seus. No final da história, Bandeira transcendeu o Modernismo. Já novo gostava da leitura, mas teve que abandonar a faculdade por ter contraído tuberculose. Passou doente toda vida, apesar das várias estadas em clínicas brasileiras e até na Suíça. Ligou-se aos modernistas em 1921 e participou da Semana. Em 1940 tornou-se membro da ABL. Apesar de um começo parnasiano, Bandeira já produzia inovações em 1919. No livro deste ano estava contido poema Os Sapos, uma irreverente crítica aos parnasianos que foi usada como lema dos modernistas da primeira fase após ser lida por Ronald de Carvalho. As várias poesias subsequentes tem metrificação nula e seus livros são ortodoxamente modernistas. Sua poesia mais famosa é, sem nenhuma dúvida, ''Vou me embora para Pasárgada''.

Obs.: No caso específico desta composição, primeiro foi feita a melodia por Jayme Ovalle, depois o poema pelo Bandeira.


Ouça o poema de Bandeira, musicado por Jayme Ovalle e interpretado por Sandy Lima.



Resumo biográfico:

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Navio Negreiro
Castro Alves
     I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta. 
'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro... 
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... 
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas... 
Donde vem? onde vai?  Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço. 
Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade! 
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa! 
Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos! 
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
.......................................................... 
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa! 
Albatroz!  Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas.
 
II
    
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após. 
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão! 
O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir! 
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...
 
III
  
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
 
IV
   
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar... 
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs! 
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais... 
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri! 
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..." 
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
          Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
          E ri-se Satanás!...
 
V
  
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! 
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?   Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!... 
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . . 
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael. 
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!... 
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer. 
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar... 
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!... 
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...
 
VI
     
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... 
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!... 
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!



     Antônio Frederico de Castro Alves nasceu na fazenda Cabaceiras, antiga freguesia de Muritiba, perto da vila de Curralinho, hoje cidade Castro Alves, no Estado da Bahia, a 14 de março de 1847 e morreu na cidade de Salvador, no dia 6 de julho de 1871. O mais brilhante dos poetas românticos brasileiros. Chamado cantor dos escravos pelos seus poemas de combate à escravidão negra no Brasil. Viveu os primeiros anos da juventude no interior do sertão. Era filho do médico Antônio José Alves, mais tarde professor na Faculdade de Medicina de Salvador, e de Clélia Brasília da Silva Castro, falecida quando o poeta tinha 12 anos. Por volta de 1853, ao mudar-se com a família para a capital, estudou no colégio de Abílio César Borges, futuro Barão de Macaúbas, onde foi colega de Rui Barbosa, demonstrando vocação apaixonada e precoce para poesia. Aos dezesseis anos foi para o Recife, estudar Direito. Começou desde logo a patentear uma notável vocação poética e a demonstrar dotes oratórios pouco comuns, que mais tarde fizeram dele um dos arautos do movimento abolicionista e da causa republicana. Escreveu poesia lírica, e também poesia de caráter social, em favor da abolição da escravatura. Participou ativamente da vida estudantil e literária. Tendo grande animação pelo teatro, em 1867, conheceu a atriz portuguesa Eugênia Câmara, dez anos mais velha do que ele, por quem se apaixonou, com ela seguindo para Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, e em sua homenagem escreveu o drama em prosa Gonzaga ou A Revolução de Minas, que ela representou. De passagem pelo Rio de Janeiro, conheceu Machado de Assis, que o introduziu nos meios literários. Em São Paulo cursa o 3º ano da Faculdade de Direito. Comçam então os primeiros desentendimentos amorosos do casal. Os amores pela atriz continuaram, mas não foram por ela correspondidos. Abraçando a caça nos bosques da Lapa, o poeta procurava esquecer os aborrecimentos, que lhe adivinham das desavenças com atriz. Em 1968, numa dessas caças feriu-se com um tiro de espingarda no pé direito. Foi conduzido para o Rio de Janeiro, teve o pé amputado. Daí passou a caminhar apoiado numa bengala, utilizando um pé de borracha. Como já a tuberculose o afligia, teve seus males agravados pelo acidente. Em 1870 dirigiu-se para a Bahia, onde publica Espumas Flutuantes. Falece em Salvador. Predominante poeta romântico, foi influenciado por Byron e Vitor Hugo. Pertenceu à Escola Condoreira. O inolvidável poeta, que foi um dos mais acerbos defensores da emancipação da escravatura no Brasil, é o patrono da cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras. Obras de Antônio Castro Alves (1847 - 1871): Espumas Flutuantes, Os Escravos, A Cachoeira de Paulo Afonso e o drama Gonzaga ou A Revolução de Minas, Vozes da África e Navio Negreiro são a sua expressão máxima e poesia.

Ouça o poema musicado por Caetano Veloso e Maria Bethânia


 
 

Fontes:

Texto:

Música e vídeo:
 http://www.youtube.com/

sábado, 30 de junho de 2012

ROSA DE HIROSHIMA

Vinicius de Moraes

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada



  Vinicius de Moraes foi um nome muito importante no meio cultural brasileiro. Diplomata de carreira destacou-se como poeta modernista, mas também como compositor e letrista popular.
Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes nasceu em 1913, no Rio de Janeiro, onde morre, infelizmente, em 1980.
Com apenas 15 anos, quando estava no curso secundário, começa a compor músicas populares. Em 1933, conclui o curso de direito. No mesmo ano, publica seu primeiro livro, a coletânea de poemas: O Caminho para a Distância (1933). Em 1935, surge: Forma e Exegese.
Em 1938 vai estudar na Inglaterra e lança: Novos Poemas. De volta ao Brasil, ingressa no ministério das relações Exteriores, em 1943. Nesse ano, o livro: Cinco Elegias inaugura uma nova fase em sua poesia.
De um início marcado fortemente pela religiosidade neossimbolista, o lírico Vinicius passa para uma temática mais próxima do amor, do erotismo e das angústias do desejo. Fala mais do cotidiano, de temas sociais, e sua linguagem se torna mais coloquial.
Em 1953 compõe seu primeiro samba: “Quando tu passas por mim”, e publica a peça: Orfeu da Conceição, em 1954. Em 1956 conhece o compositor Tom Jobim, sendo que duas de suas composições com Jobim foram: Chega de saudade e Outra vez, gravadas por Elizeth Cardoso no disco: Canção do Amor demais em 1958, com acompanhamento ao violão de João Gilberto. Ambas as músicas se tornam um marco da Bossa nova.
É de Vinicius a letra de Garota de Ipanema, a música brasileira mais conhecida em todo o mundo.
Entre 1955 e 1956, prepara o roteiro do filme: Orfeu Negro, do diretor francês Marcel Camus, que ganha o Oscar 1959 de melhor filme estrangeiro.
No inicio dos anos 60, compõem com outros músicos como Carlos Lyra, Edu Lobo, Pixinguinha, Dorival Caymmi e Francis Hime. Com Baden Powell, cria afros sambas famosos como: Canto de Ossanha e Berimbau.
É aposentado do serviço em 1968 pelo regime militar. A partir de 1969, torna-se parceiro do violinista Toquinho, com quem faz shows no Brasil e no exterior até sua morte.
Porém, pode-se dizer que Vinicius de Moraes se imortalizou. Suas obras continuam a serem lidas e admiradas até hoje. Suas composições sempre são cantadas e interpretadas novamente. Quem contribui para a cultura nunca será esquecido.

Ouça o poema cantado por Ney Matogrosso:

Fontes:
Imagem e Resumo biográfico:  http://clikaki.com.br/vinicius-de-moraes-biografia-resumida/:

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Trecho de MORTE E VIDA SEVERINA

João Cabral de Melo Neto
Assiste ao enterro de um trabalhador de eito  ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério
—  Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
— Será de terra tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
— Será de terra e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.

— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
— Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
— Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos).
— Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).

— Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
— Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
— Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
— Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
— Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
— Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.

— Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.
— Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.
— Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.
— Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.

— Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.
— Na mão direita somente
o rosário, seca semente.
— Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha.
— Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.

— Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.
— De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito a viração.
— Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.
— E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
— Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
— Se abre o chão e te envolve,
como mulher com quem se dorme.

     João Cabral de Melo Neto, diplomata, este pernambucano nascido em 1920 recusa o sentimentalismo e é por alguns considerado um "poeta-engenheiro", pois construiu suas poesias de grande apelo visual. Em 1945 entrou para o Itamarati (Ministério das Relações Exteriores do Brasil) e viajou o mundo como diplomata. Em 1968 entrou na Academia Brasileira de Letras. Apesar de ter começado surrealista em seu primeiro livro, o segundo apresentava influência construtivista. Mais tarde publicou Morte e Vida Severina, que assim como outros poemas, mostra a realidade do NE brasileiro. João Cabral de Melo Neto foi considerado o maior poeta da autodenominada "Geração de 45", apesar de ter participado pouco tempo dela.
Ouça o poema cantado por Tânia Alves:

Fontes:
Resumo da biografia:
Imagem:

quarta-feira, 27 de junho de 2012

JOSÉ


(Carlos Drummond de Andrade)

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,

seu terno de vidro, sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?

Poeta brasileiro nascido em Itabira, MG, considerado a expressão máxima da poesia nacional e o mais influente da literatura brasileira em seu tempo. De uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade natal, em Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental". De novo em Belo Horizonte, começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, e formou-se em farmácia na cidade de Ouro Preto (1925). Fundou com outros escritores A Revista, que, apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em Minas. Transferiu-se para o Rio de Janeiro (1934), onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, (1934-1945). Também trabalhou no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional até se aposentou (1962).
Iniciou-se como cronista quando passou a colaborar para o Correio da Manhã (1954) e depois para o Jornal do Brasil (1969). Admirado irrestritamente, tanto pela obra quanto pela retidão de seu comportamento como escritor, morreu no Rio de Janeiro RJ, em 17 de agosto (1987), poucos dias após o desaparecimento de sua filha única, a cronista Maria Julieta Drummond de Andrade. Seus livros e poemas foram traduzidas para o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco, tcheco e outras línguas.

Ouça o poema musica na voz de Paulo Diniz


Fontes:
Resumo biografico:
Imagem:
http://palavraria.files.wordpress.com/2011/03/carlos-drummond-de-andrade.jpg

FUMO

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!


Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!


Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...


Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...


Florbela Espanca


 Florbela d'Alma da Conceição Espanca tem hoje seus versos admirados em todos os cantos do mundo, diferentemente do que aconteceu quando ainda viva, época em que foi praticamente ignorada pelos apreciadores da poesia e pelos críticos de então. Os dois livros que publicou, por sua conta, em vida, foram "O Livro das Mágoas" (1919) e "Livro de "Sóror Saudade" (1923). Às vésperas da publicação de seu livro "Charneca em Flor", em dezembro de 1930, Florbela pôs fim à sua vida. Tal ato de desespero fez com que o público se interessasse pelo livro e passasse a conhecer melhor a sua obra. Dizem os críticos que a polêmica e o encantamento de seus versos é devida à carga romântica e juvenil de seus poemas, que têm como interlocutor principal o universo masculino.

Ouça este poema musicado por Fagner

Fontes:
Resumo da biografia e imagem: http://www.releituras.com/fespanca_fumo.asp